martedì

:: Os ombros suportam o Mundo...



Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais:

meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais:

meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes,

as discussões dentro dos edifícios provam

apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro

o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade