
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo.
Não.
Eu simplesmente sinto Com a imaginação.Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,O que me falha ou finda,É como que um terraço Sobre outra coisa ainda.Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio,Sério do que não é, Sentir, sinta quem lê !Fernando Pessoa
Deixem-me o sono !
Sei que é já manhã.
Mas se tão tarde o sono veio,Quero, desperto, inda sentir a vã Sensaçãodo seu vago enleio.
Quero, desperto, não me recusarA estar dormindo ainda, E, entre a noção irreal de aqui estar,Ver essa noção finda.
Quero que me não neguem quem não sou Nem que, debruçado euDa varanda por sobre onde não estou, Nem sequer veja o céu.Fernando Pessoa
Dorme, criança, dorme, Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.
Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.
Fernando Pessoa
Deve chamar-se tristezaIsto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.
Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.
Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.
Fernando Pessoa
Durmo, cheio de nada,e amanhã é, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser,
pública e vã
Dada a um público vão.
O sono!
este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra que de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.
O sono!
que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta,
sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz ?!
Fernando Pessoa
Limiar
Somos ainda o limiar- espessa nuvem embrionária.
Verdes,imaturos crustáceos
emergimos à superfície
grávida das ondas.
Somos o medo ou sua improvável renúncia.
O que sabemos do amor, da morte,
é só difusa,opaca,luminosa fábula.
Albano Martins
Deixei atrás os erros do que fui, Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.
Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.
Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.
Fernando Pessoa